Os pés na areia, uma areia grossa, quase pedra. A água do mar lambia os pés, deixando pequenas linhas, pequenas curvas, desenhos sem fim. Que sumiam. E logo voltavam, em outros lugares.
Rimos, jogando as cabeças para trás. As mãos se apertam, fortes, toda a força que temos. O mar cinza, feio, a areia cinza, feia. Do céu, chove quase pouco. O casaco de lã que mal cobre a minha nudez, sujo de areia, sujo de corpo, de maresia. Ele me olha com o olho mais preto do mundo. Meu dente dói.
Antes, bem antes, havia uma cidade, um apartamento. Amigos, família, vinho às sextas, um plano de previdência. Um trabalho. Dois trabalhos, o meu e o dele. Havia malas prontas pra viajar nas férias de janeiro. Passeios no shopping, vontade de comer sorvete nos dias de sol. Havia.
Depois daquele ano, quando decidimos vir. Viemos, atravessando o mato todo com malas. Viemos trazendo as coisas de barco, as poucas coisas, móveis, coisas pra comer, coisas pra fazer comida. Uma casa só nossa, na beira da praia, sem plano de previdência, sem passeios no shopping. Uma casa de dois andares. Rede, sexo, um vinho às vezes. Saídas furtivas para comprar comida, que medo de sermos descobertos.
Bate um vento e meu cabelo embaraça mais. O dente dói, e rimos. Os pés nus começam a ficar arroxeados, anoitece. Venta mais, e meu cabelo preto voa na cara dele. Somos jovens. Choramos, as mãos se apertam demais.
Desde aquele ano espaçamos nossas idas. Fugimos sempre, fingíamos sempre. Tortura de ir à cidade, andar pelas vielas mais sozinhas. Conversar um pouco pra não despertar ninguém. Conversávamos bem. Somos velhos. Ninguém desconfia. Voltávamos tristes, angustiados. Deitávamos na areia e passávamos o dia assim. Pálidos e calados. Mortos de medo e sono.
Aos poucos, a areia. Caminhamos, caminhamos, íamos e voltamos. Ríamos. Menos roupas, também no frio. A casa ficou distante, mesmo a poucos metros. Os quartos. A cozinha com aqueles móveis todos. Nada de fazer comida.
Comemos. Uma papaia que caiu no chão ali. Rimos com as sementes brotando de nossas bocas. Meu cabelo, branco, o dente que dói. Ele é lindo. Me lembra que temos papaias, rimos da nossa dieta, papaias, peixe cru e flores coloridas que podemos esfregar na cara também. Ele, magro, magro.
Depois que deixamos a casa, fui lá uma vez. Vi ratos comendo restos quase nada. A maresia já começava a comer um pouco das coisas. Voltei feliz. Deixei a porta aberta, e andei aqueles cem metros até a praia, a casa continua ali, fazendo sua sombra sobre nós. Lá deixei nossas roupas, com exceção do casaco velho de lã e da camiseta rota que usávamos. Somos nus. Nossos corpos brilham de sal, mesmo à noite.
Deitamos e encostamos as pontas de nossas cabeças. O mar avança e molha o meu casaco, está tão frio. Os dentes batem e rimos, rimos. Eu passo a mão no cabelo dele, o cabelo caindo. O olho preto, sinto me olhando, mesmo no escuro.
Depois da papaia, não comemos mais. Olhamos o mar, ele avança e volta, deixa linhas, mas não nos movemos. Os pés tão gelados, vimos o sol nascer por trás de tantas nuvens. Chegam ostras. Comíamos ostras antes de pararmos com a comida, com as roupas. As mãos sangram, as unhas crescidas apertam demais. Os topos das cabeças encostados, olhamos pra cima. De repente, ele dá um pulo e me lembra. Seus olhos, pretos, pretos. Entramos no mar, e caminhamos.
Não paramos de rir, de repente ficou tudo engraçado.
Somos jovens.
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